segunda-feira, 12 de setembro de 2011

VALIDADE DAS PROVAS OBTIDAS POR MEIOS ILÍCITOS NO PROCESSO PENAL: ANÁLISE SOB A ÓTICA DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL



RESUMO:

O presente artigo pretende estudar a validade das provas obtidas por meios considerados ilícitos no processo penal, já que, nessa espécie de processo lida-se com a questão da liberdade da pessoa. Alguns são categóricos ao afirmar que essas provas simplesmente não possuem qualquer validade. Em contraposição a esse pensamento, pretende-se demonstrar, à luz da hermenêutica constitucional, que essas provas devem ser analisadas dentro do contexto do caso concreto para serem, ou não, consideradas ilícitas.

Acredita-se que, em síntese, o que se deve fazer é sopesar os bens juridicamente protegidos postos em confronto no caso concreto. Ou seja, de um lado, estará em jogo a liberdade e ampla defesa do acusado, direitos constitucionalmente consagrados, de outro lado, estará a "ilicitude" por ele cometida para obtenção da prova de sua inocência, por exemplo. Desta forma,deve-se analisar cautelosamente o ato considerado ilícito para obtenção da prova, pois há casos em que sua ilicitude poderá ser afastada, como em situações em que houver direitos do acusado que justifiquem tal ato. Não se quer, com isso, defender incondicionalmente quaisquer provas obtidas ilicitamente.

PALAVRAS-CHAVE: Provas - meios ilícitos - validade - Processo Penal - Hermenêutica - Constituição Federal - análise do caso concreto - confronto de bens juridicamente protegidos.

1. Introdução 2.Desenvolvimento (Apresentação das teorias, hipóteses e problemas) 3. Conclusão 4. Referências bibliográficas

1. INTRODUÇÃO

A prova é meio elementar, no processo penal, de apuração de autoria, ou não, de determinado ato considerado como crime pela Lei Penal. Sendo verificada a autoria, sem que haja qualquer excludente de ilicitude, o acusado, fatalmente, terá subtraída de si a sua liberdade. Daí porque, nessa espécie de processo, as provas são de importância relevada.

Controvérsias existem, contudo, acerca das provas obtidas por meios considerados ilícitos. Imaginamos, todavia, que cabe análise aprofundada a respeito da ilicitude cometida em prol da obtenção da prova, a fim de que, em determinadas situações, seja conferido o caráter de lícito à esses meios, para que se afaste a possibilidade de se cometer injustiças.

O presente trabalho pretende concluir, à luz da hermenêutica dos princípios constitucionais e do princípios do Direito Penal, que, em
determinadas situações, não se pode simplesmente desconsiderar essas provas, pois que o Direito está intimamente comprometido com a justiça.

2. DESENVOLVIMENTO

A prova, pode-se dizer, é instituto chave de um processo, pois é através dela que os fatos alegados pelo autor serão reconhecidos como verdadeiros, ou não, pelo juízo e, conseqüentemente, será através da prova que o autor obterá a procedência, ou não, de seus pedidos.

Diz o professor Moacyr Amaral, que a prova "é bem o meio pelo qual a inteligência chega à descoberta da verdade. É um meio utilizado para persuadir o espírito de uma verdade. A verdade é a conformidade da noção ideológica com a realidade. Conceito da
verdade relativa, não de verdade absoluta, sempre procurada, nunca alcançada. Se a verdade somente pode ser procurada se apresentar através dos sentidos e da inteligência, compreender-se logo, precários são aqueles, insuficiente como é esta, a relatividade que deve presidir à conformidade da noção ideológica com a realidade. Exatamente por isso, a verdade varia no tempo e no espaço. A verdade - terra plana, de ontem - transformou-se na verdade - terra redonda, de hoje; a verdade - a pena é uma vingança - se traduz na verdade - a pena é um método de regeneração, para os povos civilizados." (SANTOS: 1952, 12)

Juliana Bastone arremata esse pensamento afirmando que "A verdade é, pois, aquilo que se crê ser real, de forma ideológica, em determinado tempo, em determinado momento histórico." (BASTONE: 2000, 92)

No Processo Penal, essa busca pela verdade ocupa papel de relevada importância, tanto que há a predominância do Princípio da Verdade Material, em detrimento da Verdade Formal, preponderante no Processo Civil.

O Princípio da Verdade Material quer dizer que cabe ao magistrado, no processo, atuar de forma a buscar sempre a verdade fática, e não meramente se contentar com as "verdades" que as partes lhe trazem aos autos. Isso permite, por exemplo, que o próprio juiz arrole "suas" testemunhas, ainda que não arroladas por quaisquer das partes.

A preponderância desse princípio do Direito Penal é de fácil justificativa, já que o processo penal tem o poder de influir sobre a liberdade de determinado indivíduo, modificando definitivamente o rumo de sua vida. Desta forma, é de tamanha importância que a fase probatória dessa natureza de processo evidencie, ao máximo, a verdade dos fatos, permitindo ao Judiciário
que profira decisão justa.

Questão controvertida, contudo, são as provas obtidas por meios ilícitos. Alguns, sem se preocupar com maiores detalhes, são categóricos e afirmam que essas provas, em hipótese alguma, podem ser trazidas aos autos.

Essa questão, contudo, não poderá ser resolvida pelo Direito Penal isoladamente, mas em conjunto com a Constituição e com a hermenêutica jurídica, senão vejamos.

O artigo 5ª da CR/88 , inciso LVI, estabelece que são inadmissíveis, em juízo, as provas obtidas por meios ilícitos. O fato é que, em determinados casos não se pode considerar que o meio seja ilícito, pena de se chegar a uma decisão injusta.

Imaginemos a seguinte situação: em determinado processo, o réu está sendo acusado de estupro, crime previsto pelo artigo 213 do Código Penal Brasileiro. A vítima, contudo, envia carta a um parente afirmando que, na verdade, o réu é inocente, sem nunca lhe ter tocado, mas sente-se constrangida em dizer a verdade em juízo, já que um dia, por um motivo qualquer, afirmara o contrário. O réu, por sua vez, termina por tomar conhecimento da existência dessa carta e, sabendo que a demora para expedição de um mandado de busca e apreensão para obtê-la poderia ocasionar a perda dessa prova, penetra na casa do parente, sem se utilizar de qualquer violência, e subtrai-lhe a correspondência.

Neste ato, o réu desrespeita dois direitos constitucionais fundamentais do parente, postos nos incisos X e XI do artigo 5º da CR/88, ou seja, o direito à intimidade e à inviolabilidade de domicílio, o que, em tese, acarretaria o reconhecimento de ilicitude da prova de sua própria inocência. Por outro lado, temos que o inciso LV do mesmo artigo da Constituição garante aos acusados o direito de ampla defesa, situação na qual se enquadra a conduta do réu ao buscar prova de sua inocência, com o escopo de garantir sua defesa. Desta forma, temos, de um lado, o direito à intimidade e à inviolabilidade de domicílio e, de outro, temos o direito à ampla defesa.

Podemos dizer, desta forma, que nesse contexto, temos opostos dois conjuntos de bens juridicamente protegidos: o direito à intimidade e inviolabilidade de domicílio do parente em oposição ao direito do réu de provar sua inocência (ampla defesa) com o intuito de não perder seu direito, também constitucional, à liberdade. Cabe-nos indagar, desta forma, qual desses conjuntos estaria revestido de maior importância? A resposta, imaginamos, não seria difícil, pois que o direito à liberdade não poderia ser suprimido simplesmente pelo direito à inviolabilidade do domicílio e à intimidade, nas condições em que se encontram no exemplo dado.

Se pensarmos dessa forma, na verdade, estamos admitindo como lícitos os meios utilizados pelo acusado para obter provas de sua inocência, pois que agiu amparado por preceitos legais constitucionais. Inclusive, com a predominância do Princípio da Verdade Material no Direito Penal, não se pode admitir como ilícito o meio de obtenção de prova acima exemplificado.

Na verdade, não poderíamos permitir que um inocente fosse condenado e recolhido às penitenciárias, que nada possuem de educativas, simplesmente porque não poderia ter penetrado em casa de determinada pessoa, sem se utilizar de violência, levando consigo a prova de sua inocência. Se procedêssemos dessa forma, estaríamos, com certeza, cometendo uma injustiça, e fazendo com que os cidadãos olhassem com grande espanto e desconfiança para o Judiciário.

Como já ressaltado, trata-se de questão a ser resolvida pela hermenêutica, com ajuda do Direito Penal (Princípio da Verdade Material) e da Constituição (Direito à ampla defesa e liberdade). É de inegável importância que a decisão considere ordenamento jurídico vigente, mas não poderá se esquecer da questão da aceitabilidade racional da decisão.

É como diz Aroldo Plínio Gonçalves, "A tarefa de julgar, para que realize a função socialmente integradora da ordem jurídica e a pretensão de legitimidade do Direito, deve simultaneamente cumprir as condições de uma decisão consistente e da aceitabilidade racional." (GONÇALVES; 1992, 102)

Marcelo Cattoni compartilha do mesmo pensamento:

"Ou seja, por um lado requerem-se decisões que possam ser consistentemente tomadas no quadro do Direito vigente; por outro, requerem-se decisões consistentes não apenas com o tratamento anterior de casos análogos e com o sistema de normas vigentes, mas que sejam racionalmente fundadas no fatos da questão, de tal modo que os cidadãos possam aceitá-las como decisões racionais." (CATTONI; 2001, 60)

Nessa linha de pensamento, realmente não seria aceitável a condenação de um inocente. Agora, contudo, imaginemos que esse mesmo réu, em vez de subtrair a correspondência do parente, lhe aplicasse tortura cruel para que o mesmo confessasse que a suposta vítima havia mentido. De um lado, teríamos a integridade física, e por que não dizer, também moral, do parente, amparada pelo inciso III do artigo 5º da CR/88. Do outro lado, estaria a liberdade do réu, posta no caput do artigo 5º da CR/88. Nessa situação, não poderíamos admitir como lícita a conduta do réu, posto que o direito à integridade física se sobrepõe ao direito à liberdade.

Essa espécie de interpretação poderia ser descritas por Ronald Dworkin pela "melhor interpretação possível", ou seja, extrair da lei a melhor interpretação que ela puder oferecer frente ao caso concreto, e não simplesmente aplicá-la, numa interpretação apressada.

Diz o autor:

"Se estiver certo afirmar que a interpretação no Direito é sensível à visão que se tem sobre o objetivo do próprio Direito, e que o objetivo do Direito tem algo a ver com a Justiça, a incerteza jurídica seria, portanto, uma simples derivação da incerteza moral ou política. Se somos céticos a respeito do Direito, se queremos dizer: 'Oh, não existe uma resposta correta para um caso realmente difícil', isso deve ser porque somos céticos em relação à moralidade política. Se pensamos existir uma resposta correta para as questões de justiça, pensamos, assim que existem respostas corretas para as questões de direito, mesmo para as mais intrincadas e sobre as quais os professores de Direito e os juizes discordem." (DWORKIN, 1997: 69)

O caso concreto, como se percebe, será de crucial importância para se avaliar se a prova apresentada foi, ou não, obtida por meio ilícito, pois será através de suas peculiaridades que a atividade interpretativa encontrará a melhor decisão para o caso.

Assim, torna-se extremamente complicado e impensado admitir-se, sem análise do caso concreto, que as provas obtidas por meio ilícitos não podem sequer serem submetidas à análise para que se constate, através da valoração dos bens juridicamente protegidos postos em confronto, se realmente podem ser considerados ilícitos os meios utilizados pelo acusado para obtenção da prova de sua inocência.

A obtenção dos meios de prova, inclusive, devem ser avaliados não somente quando apresentados pela defesa, mas também quando apresentados com o escopo de se comprovar a autoria de determinado crime, desde que o caminho utilizado para obtenção da prova não viole direitos mais importantes que o direito do Estado de punir um criminoso, prestando contas à sociedade.
A análise da licitude, ou não, do meio de obtenção de prova utilizado, sob a ótica dos direitos fundamentais, deverá ocorrer através da valoração dos bens juridicamente protegidos, devendo o magistrado optar pela "melhor interpretação possível" frente ao caso concreto.

3. CONCLUSÃO

Ao analisarmos a questão da licitude dos meios de prova, teremos que ter a capacidade de valoração dos princípios e bens juridicamente protegidos postos em contraposição, a fim de que a decisão seja no sentido de admitir as provas obtidas por meios aparentemente ilícitos em situações específicas, conforme suas peculiaridades.

Em síntese, o que realmente importa é que injustiças não sejam cometidas em nome do exacerbamento de amplitudes de direitos fundamentais constitucionais, ou até mesmo de outros direitos em patamar inferior ao direito à liberdade e à ampla defesa do acusado ou ao direito de punir do Estado. Essa análise deverá ser feita minunciosamente no caso concreto, procurando-se a melhor forma de interpretação possível.

Na verdade, as injustiças, por si só, são revoltantes, mas o são mais ainda quando praticadas no Processo Penal, pois nada mais injusto que ver um inocente sendo condenado e um culpado sendo absolvido...

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASTONE, Juliana de Carvalho. Processo de conhecimento e teoria da prova - implicações lógicas. Estudos continuados de teoria do processo. 2000.
Pag.91 - 100.

CATTONI, Marcelo. Direito processual constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos. 2001.

DWORKIN, Ronald. Direito, filosofia e interpretação. Belo Horizonte:
Caderno
da Escola Legislativa. Jan/jun 1997. Pag. 45 - 71. Tradução: Raíssa R.
Mendes - Revisão: Menelick de Carvalho Netto.

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de
Janeiro: Aide, 1992.

SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial. 2 ed., VI,
São
Paulo: Max Limonad, 1952.

AUTOR(A): Fernanda Barbosa Diniz - Procuradora do Trabalho em Minas Gerais e pós-graduada em Direito Processual pela PUC-MG

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